sábado, 13 de fevereiro de 2016

QUI DIGIT, BIS LEGIT - QUEM DIGITA, LE DUAS VEZES

CRÔNICAS DO PROF. FLÁVIO DA SILVA OLIVEIRA
URUBUS EM QUARENTENA
04/12/1965

A vida aqui na redação, não é sopa, não. Imaginem vocês que nós, os colaboradores “efetivos”, devemos entregar o trabalho semanal até 4ª feira, a fim de que o pessoal da oficina possa ir executando a composição e a paginação sem correrias e atropelos, de modo a não prejudicar os demais serviços da gráfica. Esta semana, entreguei o meu mais cedo. Segunda-feira, a crônica já estava lá, aliviando-me de uma preocupação durante, pelo menos, sete dias. Acontece que, na 5ª feira, à noite, recebi um pedido da direção do semanário: achavam que a crônica não devia ser publicada, porque abordava assunto que, por razões sentimentais e, portanto, irrecusáveis – não lhes satisfazia. Concordei, imediatamente, ficando certo que minha coluna seria substituída por qualquer outra coisa, nesta semana. No entanto, chegando em casa, achei que eu mesmo deveria fazer a substituição e passei a matutar sobre o assunto, rememorando os fatos locais que pudessem merecer a transcrição. Nada conseguindo de nativo, ocorreu-me uma notícia que encontrei, dias atrás, nos jornais paulistanos: os Estado Unidos haviam mandado buscar alguns urubus no Brasil, porque precisavam deles, no exercício de suas funções precípuas, isto é, para catar carniça, já que seus irmãos americanos não se prestam a isso. Com a notícia foi bastante lacônica, não esclarecendo onde aquelas aves foram caçadas, posso admitir que Porto Ferreira teve o privilégio de atender à exportação, já que é possuidor de vasto plantel nativo. Assim, acabei por encontrar um assunto local, como é desejado, valorizado por sua ação internacional.
Mas, pensamento vem, pensamento vai, vi-me com dó da retintas aves brasileiras, convencido de que irão passar nos “States”, uma vida bastante apertada, não por estranharem o clima nem a guturalidade do linguajar, mas, pela falta de “boia”. Em um país adiantado e organizado como aquele, onde tudo é tecnicamente previsto e resolvido, onde encontrar carniça, que não deixa de ser um símbolo de desleixo e de descuido? Carniça enlatada? ... Não, isso não pode ser... Deve haver, por lá, alguma carnicinha que anda preocupando os já preocupadíssimos americanos. Com a perspectiva de uma importação em larga escala, portanto, se os urubus tiveram entendimento, devem estar de quarentena e torcendo para que a experiência não dê certo. Mas, é bem possível que muitos deles sejam despachados, porque o urubu é mesmo uma ave sem sorte. Para começar, basta lembrar que seus filhotes nunca são vistos e admirados por ninguém. Dificilmente encontra-se uma pessoa que os tenha visto. Depois, apesar de ser uma ave retinta de preta e existir aos milhares, não foi ela que serviu de poética comparação ao notável Alencar, para imortalizar-se na literatura brasileira, dando lugar à desconhecida graúna.
Além do mais, alguns ainda os chamam de “galinha preta”, o que não deixa de ser uma afronta à espécie, já que galinha é galinha e urubu é urubu. Aliás, isso faz-me lembrar de uma história, contada por um amigo como verídica. Contou-me ele que descia por uma de pequena cidade interiorana, uma pobre mulher, quase que maltrapilha, acompanhada de dois ou três filhos pequenos. Ao passarem por um terreno baldio, uma das crianças começou a gritar:
- Mãe, venha ver uma galinha preta... Mãe, venha ver...
-Não é galinha preta, meu filho, aquilo é urubu.
Ainda falando em galinha preta e em urubu e continuando a caminho, tiveram o azar de passar por um padre que, tomando como epítetos para si aqueles nomes, armou um sururu danado, inclusive chamando a polícia.

Aí está, pois, como consegui substituir minha crônica da semana, seguindo a praxe de usar assunto local, muito embora acreditando que os urubus exportados não sejam ferreirense. Felizmente.

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